O poder de decisão frente ao parecer jurídico no processo administrativo

O poder de decisão frente ao parecer jurídico no processo administrativo

RESUMO
Dentre todas as atividades da Administração Pública, penso que poucas são tão determinantes para o alcance dos resultados a serem obtidos em prol da coletividade senão aquela entregue ao Assessor Jurídico. Para cada passo que o Gestor Público percorre (ou deixa de percorrer), uma de suas principais balizas, é o parecer jurídico. Fácil perceber tal grau de importância na medida em que a atividade pública é orientada por um emaranhado de atos normativos (leis, decretos, portarias etc) e princípios jurídicos que não raro exigem exercícios altamente técnicos para sua correta aplicação. Não há especialidade técnica empregada pelo poder Público para consecução de seus fins que não esteja atrelada a normas legais, a exigir do aplicador do Direito, técnicas refinadas de exegese. Neste breve trabalho debateremos as espécies de manifestações que emitem os Assessores Jurídicos de acordo com a doutrina e a jurisprudência do STF.

Palavras-chave: administrativo. Processo. Parecer.
1. Introdução e contextualização 2. A Função do Assessor Jurídico nas entidades públicas 3. Espécies de manifestações praticadas pela Assessoria Jurídica 4. Conclusão



1.    Introdução e contextualização

O Estado, como instituição organizada, tem como função precípua, a responsabilidade pela organização e pelo controle social, detendo o que Weber, na clássica lição, chamou de “monopólio legítimo do uso da força”. Dentro desse contexto, o Governo, conjunto de instituições que agem em nome do Estado, desenvolve uma série de atividades que visa atender aos objetivos fundamentais insculpidos no art. 3º da Constituição Federal e 1988: a) construir uma sociedade livre, justa e solidária; b) garantir o desenvolvimento nacional; c) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; d) promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.  
Para a consecução desse fim, a máquina administrativa se serve de uma infinidade de profissionais das mais diversas áreas do conhecimento humano, que, somando seus esforços, dão andamento às políticas públicas e projetos de Governo. Uma, em especial, mercê destaque: a atividade jurídica. Celso Antônio Bandeira de Mello[1] que assinala, sem titubeio, que dentre todas as atividades profissionais envolvidas na atividade administrativa, umas mais determinantes para o alcance dos resultados a serem obtidos em prol da coletividade é aquela entregue ao Assessor Jurídico, verbis:
“Administrar é uma atividade complexa que tem intersecções com todos os campos do conhecimento, resultando disto, como observou Yves Weber, ser-lhe necessário acostar-se em múltiplas técnicas atinentes a estes diversos setores. Conforme ressaltou: ‘entre esta diversidade de técnicas solicitadas, uma transcende a todas, a técnica jurídica”.
Para cada passo que o Gestor Público percorre (ou deixa de percorrer), uma de suas principais balizas, é o parecer jurídico. Como é bastante cediço, a atividade administrativa é orientada primordialmente pelo princípio da legalidade, que envolve a observância de um emaranhado de atos normativos (leis, decretos, portarias etc) e princípios jurídicos que exigem do jurista exercícios altamente técnicos para sua correta interpretação, a reclamar do aplicador do Direito, técnicas refinadas de hermenêutica, dando suporte jurídico às ações da Administração Pública. Daí a nossa preocupação em tratar do tema em apreço.

2.    A Função do Assessor Jurídico nas entidades públicas

Uma vez assim investido, o papel do Advogado Público é realizar a mediação entre a vontade democrática e o direito, compreendendo a política pública que se deseja implementar e buscando estabelecer os mecanismos que viabilizem a realização dessa vontade estatal. O Assessor Jurídico atua nas entidades do Poder Público, fundamentalmente, nas atividades de assessoria e consultoria. Na consultoria e na assessoria, o causídico busca orientar o Gestor a tomar decisões sobre atos jurídicos que pretenda empreender. O advogado público, a partir dos dados fáticos levados pelo Gestor emite sua resposta à luz do Direito na forma de um parecer, que, em última medida, se reveste em um aconselhamento. O parecer pode ser escrito ou verbal, mas em ambos os casos deverá ser conclusivo, ou seja, o jurista deverá adotar posicionamento objetivo sobre a questão posta, indicando as razões que o conduziram a assumir aquele entendimento. Nas palavras de Gisela Gondin Ramos[2], cuida-se de atividade de “advocacia preventiva”, porquanto destinada a evitar prejuízos futuros, com ações judiciais, e anulação de atos por vícios de legalidade.
Consoante o que foi dito acima, o cargo ou função de assessor jurídico dos órgãos e entidades da Administração Pública é destinado ao exercício da advocacia preventiva (para a atividade postulatória, costuma-se atribuir a nomenclatura de Procurador). Por assim dizer, o profissional sempre será instado a manifestar-se em processos administrativos (consultoria), exarando pareceres sobre atos jurídicos. Poderá também ser convocado a participar de reuniões gerenciais (atividade de assessoramento), para auxiliar na tomada de decisões, opinando acerca dos desdobramentos jurídicos das medidas suscitadas, ou ainda, coordenar e orientar os respectivos departamentos jurídicos (função de direção). A partir das suas ponderações (escritas ou verbais) o Gestor tomará a sua decisão de fazer ou deixar de fazer algo, segundo a orientação oferecida.
Resta saber, o quão envolvido ficará o Gestor, a partir da emissão do parecerista, no exercício das suas competências. O administrador deverá acatar as orientações do assessor jurídico ou poderá decidir de forma diversa? É a resposta para essa indagação que buscamos nesse trabalho.

3.    Espécies de manifestações praticadas pela Assessoria Jurídica

De acordo com a classificação dos atos administrativos proposta por Hely Lopes Meirelles[3], o parecer é ato administrativo enunciativo, pois não expressam uma vontade estatal, seja ela criadora de direitos, regulamentadora ou negocial. O parecer, assim como a certidão, a declaração, o atestado e a apostila, por não expressar um comando, é considerado ato administrativo apenas no aspecto formal, pois somente serve ao desiderato de expressar o conteúdo ou a existência de dados ou informações constantes de arquivo do órgão ou uma opinião ou juízo de valor sobre situação fática ou jurídica, não se vinculando ao que enunciam., Pode também, em alguns casos, assumir a feição de ato constitutivo no caso do parecer normativo, pois, com a aprovação da autoridade competente, passa a impor obrigações ou deveres, criando situações jurídicas novas.
Diógenes Gasparini[4] e Hely Lopes Meirelles[5] entendem que o parecer é uma opinião técnica fundamentada sobre matéria submetida à sua apreciação. Ambos ilustres juristas concordavam que o parecer tem caráter meramente opinativo e que não vincula a Administração ou os particulares, salvo se aprovado por ato subsequente, opinião compartilhada por José dos Santos Carvalho Filho[6], que, indo mais além, entende que o parecer e a decisão subsequente consubstanciam “atos antagônicos” e que por isso, sequer podem ser emitidos pelo mesmo agente.
Esse posicionamento conduz à percepção de que, desprovido de força vinculante, o parecer jurídico não obriga a autoridade competente (ou os particulares) a adotar as medidas ou executar o ato consultado na conformidade do parecer. Um exemplo prático bem ilustrará a hipótese. Se um Secretário Municipal encaminha à sua Assessoria uma consulta sobre a possibilidade de o Município realizar um aditamento a um contrato, visando alterar, em parte, o projeto inicialmente contratado, e o parecer é desfavorável à alteração, como este ato (o parecer) não gera força vinculante, o Secretário Municipal não ficará obstado de celebrar o aditamento ao contrato. A doutrina de Celso Antônio Bandeira de Mello[7] esclarece ainda que a os pareceres são atos de administração consultiva e são aqueles que “visam a informar, elucidar, sugerir providências administrativas a serem estabelecidas nos atos de administração ativa.”
Não sobra dúvida no sentido de que, ao manifestar-se em resposta à consulta formulada, o Assessor Jurídico não pratica ato decisório, expedindo ato de cunho opinativo. A despeito disso, parte da doutrina e o próprio STF, como se verá logo adiante, alguns pareceres poderão ser revestidos de força vinculante.
Mas não é sempre que o órgão jurídico é instado a ofertar parecer por ato de vontade da autoridade competente. Em algumas situações previstas em lei, a regularidade do ato que será (ou deverá ser) deflagrado, será dependente de análise jurídica prévia. Nessas hipóteses, o encaminhamento ao setor jurídico deixa de ser mera consulta para se tornar parte do devido processo legal. Di Pietro[8], com seu habitual didatismo e lembrando as lições de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello (207:583), vai um pouco mais a fundo e classifica o parecer em três espécies: facultativoobrigatório, e vinculante, definindo-os como:
“O parecer é facultativo quando fica a critério da Administração solicitá-lo ou não, além de não ser vinculante para quem o solicitou. Se foi indicado como fundamento da decisão, passará a integrá-la, por corresponder à própria motivação do ato.
O parecer é obrigatório quando a lei o exige como pressuposto para a prática final do ato. A obrigatoriedade diz respeito à solicitação do parecer (o que não lhe imprime caráter vinculante). Por exemplo, uma lei que exija parecer jurídico sobre todos os recursos encaminhados ao Chefe do Executivo; embora haja obrigatoriedade de ser emitido o parecer sob pena de ilegalidade do ato final, ele não perde seu caráter opinativo. Mas a autoridade que não o acolher deverá motivar sua decisão [...].
O parecer é vinculante quando a Administração é obrigada a solicitá-lo e a acatar sua conclusão. Para conceder aposentadoria por invalidez, a Administração tem que ouvir o órgão médico oficial e não pode decidir em desconformidade com sua decisão [...]”

Já a Lei 9.784/99, art. 42, §§ 1º e 2º[9] delimita uma variação do conceito das espécies de parecer, subdividindo o de natureza obrigatória em duas subespécies: vinculante e não vinculante, o que não significa negar as variações apontadas por Di Pietro.
Apesar de o parecer facultativo integrar o ato, com o acatamento do mesmo como um de seus fundamentos, o parecer não perde sua autonomia de ato meramente opinativo. Este é o caso para o qual o Gestor não tinha obrigação de ouvir seu corpo técnico, mas decidiu fazê-lo para subsidiar sua decisão. O parecer será obrigatório quando a oitiva do parecerista é parte necessária da instrução do processo. É determinada pela lei como condição de eficácia processual e sua transgressão corresponderá à violação ao princípio do devido processo legal. Mais ainda sim, segundo Di Pietro,[10] a autoridade competente não ficará adstrita ao parecer, que mantém intacta sua natureza opinativa. Contudo, prossegue a autora, para decidir de forma diversa, deverá fundamentar sua decisão. Carlos Pinto Coelho Motta[11] sustenta que a inexistência do parecer obrigatório pode dar ensejo à nulidade do ato final, esclarecendo que embora o conteúdo do parecer não seja vinculante, sua presença é necessária para legitimidade do ato final.
Finalmente, o parecer será vinculante quando, além de ser obrigatório por lei, amarra, atrela a decisão final ao seu entendimento. Uma vez ouvido o órgão consultivo, a autoridade não poderá decidir de forma diversa daquela exposta no parecer. Poderá, no máximo, não decidir. Neste tema, cabe lembrar a lúcida orientação da doutrina de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello[12]:
“Parecer conforme, ou vinculante, é o que a Administração Pública não só deve pedir ao órgão consultivo, como deve segui-lo ao praticar o ato ativo ou de controle. Encerra regime de exceção e só se admite quando expressamente a lei ou o regulamento dispõem nesse sentido. O ato levado a efeito em desconformidade com o parecer se tem como nulo.
Mas esse entendimento ainda gera certa controvérsia. A questão gira em torno da efetividade do parecer como ato administrativo. A doutrina pátria, em sua maioria, adota, conforme anteriormente visto, o entendimento segundo o qual o parecer sempre se constituirá um ato enunciativo, uma opinião técnica; jamais um ato administrativo típico, porquanto o ato administrativo em si (com característica de auto-executoriedade) é aquele proferido pela autoridade administrativa competente. Carlos Pinto Coelho Motta apud Dalari aponta o caráter vinculante da natureza própria do parecer jurídico proferido no processo licitatório, senão, veja-se:
“A incongruência de tentar dar a característica de “vinculante” a um parecer, pelo raciocínio lógico de que parecer vinculante não é parecer, é decisão. O parecer jurídico não se constitui como ato administrativo, representando apenas uma manifestação opinativa, que pode ser agregada como elemento de fundamentação ao ulterior ato administrativo, nos termos permitidos pelo §1. do art. 50 da Lei n. 9.784/99.”
Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari[13] fortalecem a tese de que o parecer vinculante é a própria decisão e, portanto, caracteriza-o de forma absoluta como peça opinativa:
“Parecer jurídico, portanto, é uma opinião técnica dada em resposta a uma consulta, que vale pela qualidade de seu conteúdo, pela sua fundamentação, pelo seu poder de convencimento e pela respeitabilidade científica de seu signatário, mas que jamais deixa de ser uma opinião. Quem opina, sugere, aponta caminhos, indica uma solução, até induz uma decisão, mas não decide.
Mas o próprio e já aqui citado Carlos Pinto Coelho Motta[14], em excelente trabalho disponível na rede mundial de computadores, abraçando doutrina de BANDEIRA DE MELLO, concorda com a existência, ainda que excepcional, de pareceres de natureza vinculativa,
“Resta a hipótese do parecer vinculante em sua acepção absoluta, ou seja, a execução do ato pelo órgão não admite qualquer margem discricionária: deve cumprir exatamente o estabelecido no parecer, não lhe sendo permitido até mesmo o “deixar de agir”. Nesse caso, o parecer do órgão consultivo, extrapolando suas funções usuais consoante regência legal autorizadora, caracteriza:
(a) uma das partes de um ato complexo; ou
(b) ato ativo autônomo, identificado como autorização ou aprovação prévia.”
Corrobora-se com a tese muito bem defendida por Di Pietro e Coelho Motta, discordando-se, apenas parcialmente, no que concerne às consequências práticas que a festejada jurista apresenta em função dessa classificação. Para a autora, no caso de parecer obrigatório, caso a autoridade venha a não acolher a solução impressa na manifestação, deverá “motivar a sua decisão ou solicitar novo parecer”[15]Concessa máxima vênia, em primeiro lugar a motivação é um elemento imprescindível em qualquer ato administrativo[16], e, por isso mesmo, necessário também nos casos de parecer facultativo quando, após ouvido o órgão consultivo, o gestor venha a decidir de forma diversa. Logo, não seria essa característica um diferencial entre uma e outra espécie de parecer. Em segundo, se para decidir de forma diversa a autoridade deve solicitar novo parecer, este não é apenas obrigatório, mas sem dúvida nenhuma, vinculante. Considerando que, se para exarar o ato (decisório) da forma como pretende, a autoridade precisa ter em mãos um parecer cuja opinião coincida com a sua inclinação de decidir, por óbvio que estaríamos diante da hipótese de um parecer vinculante. Entende-se que o parecer obrigatório é um elemento processual, e, somente nisto, vincula a autoridade, quer dizer, ele será forçado a ouvir seu órgão consultivo, mas não estará obrigado a decidir na forma da manifestação, estando desobrigado de solicitar novo parecer.
Já em relação ao parecer vinculante, Di Pietro[17] anota que “também neste caso, se a autoridade tiver dúvida ou não concordar com o parecer, deverá pedir novo parecer.” Aqui, se discorda com um pouco mais de veemência, inclusive pelos possíveis e nefastos desdobramentos que podem surgir em relação ao campo da independência profissional do parecerista. Ora, se a lei conferiu caráter vinculante ao parecer, era justamente para retirar da autoridade competente parte da sua autonomia para decidir. Trata-se de um verdadeiro freio ao poder discricionário. Se imaginarmos uma situação em que a autoridade pudesse ir solicitando pareceres até que um venha alinhado ao que pretende, abrir-se-ia um enorme espaço para arbitrariedades. E de vinculante, o parecer, em verdade, nada teria.
Não se nega, entretanto, que a autoridade competente mantenha o poder de discordar da posição adotada pelo parecerista, ou mesmo desconfiar da ética do profissional e, nessa conformidade e pelo dever de zelo com a coisa pública perante a sociedade, exigir novo parecer. Porém, esta hipótese (a de solicitar novo parecer de natureza vinculante), deve ser admitida em circunstâncias excepcionalíssimas. Vislumbra-se três situações nas quais esse poder de autoridade albergaria a solicitação de novo parecer.
A primeira delas, mais simples, porém muito frequente, seria o caso de o parecer ser exarado de forma inconclusiva. Como o ato administrativo somente pode ser deflagrado na forma descrita no parecer vinculante, não sendo conclusiva a manifestação, a autoridade competente ficaria sem o parâmetro legalmente necessário para a tomada de decisão; ou pior, teria à sua disposição, um poder discricionário que originariamente não lhe teria sido conferido. Parecer não conclusivo é aquele no qual seu subscritor, ao final da exposição, não define objetivamente qual conduta deve a autoridade adotar, ou se a conduta consultada (comissiva ou omissiva) está ou não de acordo com as normas regentes da espécie. A advocacia consultiva é uma prestação de serviços em que o cliente tem de receber, como produto final, a opinião técnica pessoal do consultor. O profissional que ao invés de ofertar a sua a opinião, mas, e.g., discorre apenas uma exposição das correntes doutrinárias aceitas na atualidade do cenário jurídico, na verdade, não presta o serviço, e por ele não poderia ser remunerado. O mesmo se diz na advocacia pública. O Assessor nomeado para cumprir sua função de advocacia preventiva é remunerado para prestar o serviço tal qual o deveria. Caso a autoridade receba um parecer em termos abertos, deverá solicitar do mesmo profissional seu posicionamento efetivo ou solicitar de outro, a manifestação necessária.
A segunda hipótese em qu parecer ser razoável exigir novo parecer, é quando a manifestação adota posição vanguardista em relação ao tema suscitado. Diz-se, por vanguardista, aquela posição doutrinária que, a despeito de bem construída sob o ponto de vista científico, não reflete a posição majoritária da doutrina ou da jurisprudência, ou ainda, tema pouco abordado sob o enfoque proposto. Nessas condições, seria razoável que a autoridade se sentisse um pouco temerosa em adotar imediatamente a solução proposta no parecer e, com o fito de dar maior robustez ao futuro decisum, solicitar a oitiva de uma segunda opinião técnica.
A terceira, situação seria para os casos em que o parecer se mostra inconsistente. Por inconsistente, entenda-se aqueles que, a despeito de conclusivo, é frágil na argumentação, no desenvolvimento do raciocínio científico, ou mesmo não fundamentado. A ideia segundo a qual é necessária a análise técnico-jurídica (por isso a lei a exige para eficácia do ato) é justamente possibilitar a tomada de decisões com base em profundo estudo da adequação normativa e das implicações jurídicas das mesmas. No caso do parecer inconsistente, fica claro que esse desiderato não teria sido alcançado e, mesmo adotando a solução proposta pelo órgão consultivo, o ato estaria próximo de irregular. Afinal, caso anulado posteriormente, inclusive pelo Judiciário, a autoridade competente seria responsabilizada em razão da existência de culpa na modalidade in vigilando. Foi o que decidiu o Plenário do Tribunal de Contas da União no precedente abaixo:
“A utilização de pareceres jurídicos sintéticos, de apenas uma página, com conteúdo genérico, sem demonstração da efetiva análise do edital e dos anexos, em especial quanto à legalidade das cláusulas editalícias, permitiu, no caso concreto, a presença de itens posteriormente impugnados (..) necessidade de os pareceres jurídicos exigidos pelo art. 38 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, integrarem a motivação dos atos administrativos, com abrangência suficiente, evidenciando a avaliação integral dos documentos submetidos a exame (v. g.: Acórdão 748/2011-Plenário)”.
Portanto, a solicitação de novo parecer, nos casos em que o mesmo é de caráter vinculante não é regra, mas, exceção. O parecer vinculante condiciona a prática do ato na forma como se apresenta, sem espaço para o gestor buscar outra via de decidir, salvo nas situações excepcionalíssimas conforme acima apontadas. Situações estas que, inclusive, poderiam ensejar a abertura de sindicância para apuração de responsabilidades ou mesmo a exoneração do Assessor, se cargo de provimento precário pela quebra da confiança.
Dito isto, já é possível retornar ao debate sobre a classificação das espécies de pareceres. Vimos como a doutrina clássica enxerga tais atos enunciativos e como a doutrina moderna os vê. O Supremo Tribunal Federal passou a se posicionar conforme esta última. Em um primeiro momento, o Pleno adotou, à unanimidade, a doutrina de Hely Lopes Meirelles, para considerar que parecer jurídico não é ato administrativos. No julgamento do MS no. 24.073[18], o relator, Min. Carlos Velloso assim se manifestou em seu voto:
“O parecer emitido por procurador ou advogado de órgão da administração pública não é ato administrativo. Nada mais é do que senão opinião emitida pelo operador do direito, opinião técnico-jurídica, que orientará o administrador na tomada da decisão, na prática do ato administrativo, que constitui na execução ex officio da lei.”

Em seguida, no julgamento do MS no. 24.584[19], a cuja relatoria coube ao Min. Marco Aurélio Mello, o Eminente Min. Joaquim Barbosa, em seu voto-vista, aprofundou o exame e justificou o pedido de vista afirmando que, até aquele momento, “a doutrina e a jurisprudência brasileiras ainda não exploraram todas as possibilidades que o tema oferece”. Adotando a doutrina francesa da pena de Réné Chapus[20], o festejado magistrado reconhece a existência de uma espécie de parecer a qual se reveste de força vinculante (característica que não se nega ser típica dos atos administrativos propriamente ditos), dependendo da obrigação que a lei impõe ao administrador proceder ou não à consulta. Entende que caso a lei estabeleça a obrigação de “decidir à luz de parecer vinculante ou conforme (décider sur avis conforme), o administrador não poderá decidir senão nos termos da conclusão do parecer, ou, então, não decidir (grifos do original).” Prossegue o eminente Ministro, salientando que, nos casos de a lei estabelecer a obrigação de o gestor decidir na conformidade do parecer, caso não o faça, seu ato estará “maculado por vício de competência.”
Mais adiante, no julgamento do MS no. 24.631[21], o emérito Magistrado, agora na qualidade de Relator, reafirmando a posição sustentada no julgado anterior, faz uma análise bastante aprofundada acerca da classificação do parecer enquanto ato administrativo, consignando em seu voto lapidar lição, in verbis:
“(...) Como já sustentei no voto-vista no MS 24.584, calcado em respeitável doutrina, a obrigatoriedade ou não da consulta tem influência decisiva na fixação da natureza do parecer. Assim, poder-se-ia dizer que:
(i) quando a consulta é facultativa, a autoridade não se vincula ao parecer proferido, sendo que seu poder de decisão não se altera pela manifestação do órgão consultivo;
(ii) quando a consulta é obrigatória, a autoridade administrativa se vincula a emitir o ato tal como submetido à consultoria, com parecer favorável ou contrário, e se pretender praticar ato de forma diversa da apresentada à consultoria, deverá submetê-lo a novo parecer.
(iii) mas quando a lei estabelece a obrigação de “decidir à luz de parecer vinculante” (decider sur avis conforme), o administrador não poderá decidir senão nos termos da conclusão do parecer, ou não decidir.
A doutrina brasileira, embora tradicionalmente influenciada pela doutrina francesa, nesta matéria, não desce a essa sofisticação de detalhes, preferindo manter-se fiel à noção de que o parecer jurídico tem sempre caráter opinativo. O que é relevante nessa classificação é que, no caso do parecer vinculante, há efetiva partilha do poder decisório. É nessa linha de entendimento que o professor CHAPUS sustenta haver maculação, por vício de competência, do ato administrativo expedido sem a observância do “avis conforme” nos casos em que a lei o exige”
Todavia, em que pese a envergadura científica do festejado jurista, como também da doutrina por ele colacionada, parece ser necessário tecer algumas reflexões também quanto aos desdobramentos práticos decorrentes dessa abordagem.
A tese francesa, aceita pela Corte Suprema pátria, defende que, no caso do parecer obrigatório, a autoridade se “vincula a emitir o ato tal como submetido à consultoria” e, caso pretenda a seguir por outro caminho (que não o indicado no parecer), “deverá submetê-lo a novo parecer” (posição parecida com a doutrina de Di Pietro[22]). Na hipótese do parecer de natureza vinculante, a autoridade estaria atrelada à conclusão do parecer e sendo assim, não poderia “decidir senão nos termos da conclusão do parecer, ou não decidir”.
Segundo essa teoria, o parecer chamado de obrigatório, em verdade, se transmudaria em vinculante, pois, se para decidir de forma diversa o administrador necessitar obter outro parecer (que conclua da forma como pretende praticar o ato), sua decisão, no fim das contas, seria proferida com observância do avis conforme. Afinal, o ato seria praticado sempre na esteira da conclusão do parecer. Na prática não haveria distinção entre obrigatório e vinculante. Do mesmo modo como acima sustentado, ao debater a teoria defendida por Di Pietro, independentemente da natureza do parecer, a decisão final, ou seja, o ato propriamente dito, sempre deverá ser motivado, mesmo nos casos de parecer facultativo. Logo, assim como lá, aqui, essa condição não se consubstanciaria num matiz próprio dessa categoria de parecer.
No que concerne à caracterização do parecer vinculante, a tese francesa também aponta para uma direção que, com todas as vênias, parece imprópria. Ao abrigar a tese segundo a qual, no caso de parecer vinculante, “o administrador não poderá decidir senão nos termos da conclusão do parecer, ou não decidir” (grifado) a doutrina permite duas ilações, aparentemente incongruentes. A primeira, seria a de admitir que, em alguma circunstância, o administrador estaria impedido de solicitar novo parecer, mesmo que a manifestação apresentada esteja totalmente desprovida de um mínimo de razoabilidade técnica, ou até mesmo claramente tendenciosa. Claro que isso é inimaginável, pois o administrador permanece guardião do interesse da coletividade e, por isso mesmo, não pode ser forçado a acatar cegamente parecer inconsistente, o que, a despeito disso, não descaracterizaria a natureza vinculante do parecer, nem tampouco o aproximaria do parecer obrigatório.
A segunda, é a de que o administrador poderia cogitar “não decidir”, em alternativa a decidir com avis conforme. Não é aceitável a hipótese na qual, tendo de decidir, o gestor pudesse optar por manter-se inerte; silente. Ora, isso seria uma arbitrariedade. Não é admissível que o administrador tenha autorização legal para se esquivar do seu dever de decidir, arquivando o processo sem tratar-lhe o mérito, ou, pior, aplicando o chamado “embargo de gaveta”. Se um servidor atravessa requerimento no qual pretende, após avaliação da Junta Médica, ser aposentado por invalidez, e a Junta decide pela aposentadoria, o administrador é obrigado a aposentar o requerente. Não há espaço para decidir de forma diversa, salvo nas situações excepcionalíssimas que já foi aqui referida, e mesmo assim, com base em outro parecer. Jamais poderia, alternativamente, como sugere a lição francesa, simplesmente, não decidir.
Há casos em que, de fato, o gestor pode não exarar o ato na conformidade do parecer, arquivando o processo, não decidindo seu mérito. Seria o caso do parecer sobre a minuta de um edital de licitação[23] que, indubitavelmente se caracteriza como parecer vinculante. Se a assessoria jurídica, após análise, oferece parecer apontando diversas impropriedades a serem corrigidas na minuta, o gestor, caso pretenda realizar o torneio licitatório, deverá retornar os autos ao setor competente para que o mesmo providencie as necessárias alterações. Mas, poderá, também, determinar o arquivamento do processo, deixando de realizar o prélio. Ainda sim, é de se notar que a decisão pelo arquivamento, não teria sido uma alternativa às determinações manifestadas pelo parecerista, mas fruto de seu juízo pessoal de conveniência e oportunidade de contratar aquele objeto naquele momento.

4.    Conclusão

Dito isto, não se pode deixar de admitir a classificação das espécies de pareceres, conforme proposta por DI Pietro e aceita pelo STF, com as ressalvas acima, para reconhecer que, como regra, o parecer jurídico é facultativo, isto é, solicitado por ato de vontade da autoridade competente, integrando a motivação do ato subsequente. Em certos casos, a consulta será obrigatória, por imposição de lei ou ato normativo interno. Nesta hipótese, o parecer é um elemento processual, surgindo como uma espécie de freio ao poder discricionário. Em ambas as situações, o gestor não está vinculado a decidir na forma da manifestação. Mas deverá motivar sua decisão, não necessariamente com outro parecer. Ele mesmo poderá justificar e motivar o decisum, assumindo a responsabilidade pelo ato. E, finalmente, em casos excepcionais, o parecer assume, sim, a condição de pressuposto de perfeição do ato, tornando-se vinculante para o gestor. Não haverá margem para decidir de forma diversa nem tampouco manter-se inerte, não decidindo.



[1] Curso de Direito Administrativo. 30ªed., São Paulo: Malheiros, 2013, p. 445.
[2] Estatuto da Advocacia: Comentários e Jurisprudência Selecionada. 5ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2009, pág. 10.
[3]Direito Administrativo Brasileiro. 40ª., ed., São Paulo: Malheiros, 2014, pgs. 180-194
[4] Direito Administrativo. 17ª ed., São Paulo: Saraiva, 2012, p. 143.
[5] Direito Administrativo Brasileiro. 40a ed., São Paulo: Malheiros, 2014. p. 211.
[6] Manual de Direito Administrativo. 27ª, São Paulo: Atlas, 2014, p. 139.
[7] Op. Cit.,  p. 426/427
[8] Direito Administrativo, Atlas 2011, p. 241 e segs. No mesmo sentido, MELLO, Celso Antônio Bandeira de, Op. Cit., 446.
[9] Art. 42. Quando deva ser obrigatoriamente ouvido um órgão consultivo, o parecer deverá ser emitido no prazo máximo de quinze dias, salvo norma especial ou comprovada necessidade de maior prazo. § 1º Se um parecer obrigatório e vinculante deixar de ser emitido no prazo fixado, o processo não terá seguimento até a respectiva apresentação, responsabilizando-se quem der causa ao atraso. § 2º Se um parecer obrigatório e não vinculante deixar de ser emitido no prazo fixado, o processo poderá ter prosseguimento e ser decidido com sua dispensa, sem prejuízo da responsabilidade de quem se omitiu no atendimento.”
[10] Op. Cit., p. 242.
[11] Direito Administrativo Brasileiro, 13ª. ed., São Paulo, 1988, pp. 152-153.
[12] MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios gerais de direito administrativo. 2ª. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 576-577.
[13] FERRAZ, Sérgio e DALLARI, Adilson Abreu. Processo administrativo. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 140-141.
[14] Cautelas para Formalização de Parecer Jurídico, apud BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. Princípios gerais de direito administrativo. 2ª. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 577. Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=2636
[15] Op. Cit., p. 242.
[16] A própria autora defende a ideia segundo a qual a motivação é elemento necessário em todos os atos administrativos, inclusive, os de caráter discricionários: “Entendemos que a motivação é, em regra, necessária, seja para os atos vinculados, seja para os atos discricionários, pois constitui garantia de legalidade, que tanto diz respeito ao interessado, como à própria Administração Pública; a motivação é que permite a verificação, a qualquer momento, da legalidade do ato, até mesmo pelos demais Poderes do Estado.” (Op. Cit., p. 220)
[17] Ibidem.
[18] Ementário no. 2130-2, j. em 06/11/2002, DJ 31/10/2003.
[19] Ementário no. 2324-2, j. em 09/08/2007, DJe 20/06/2008.
[20] Droit Administratif Général, tome 1, 15 emé ed. Paris: Montcherstien, 2001, pág. 1113-1115
[21] Ementário no. 2305-2, j. em 09/08/2007, D.J. 01/02/2008.
[22] Ibidem
[23] Lei no 8.666/1993, art. 38, par. único.

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