A Pré-qualificação
de marcas como ferramenta de garantia de qualidade nas compras públicas
por Luiz Cláudio de Azevedo Chaves*
A
pré-qualificação, como ferramenta do princípio da padronização, com vistas a
formação de banco de marcas aceitáveis vem sendo adotada por diversos órgãos da
Administração Pública como medida de garantia de qualidade nas compras de
insumos e produtos de uma maneira geral. Neste trabalho vamos apontar as
características do princípio da padronização e suas formas de utilização, inclusive
nas obras públicas e nas entidades do chamado Sistema ‘S’.
Palavras-chave: licitação. Obras. Marcas.
Pré-qualificação.
1 - Introdução
Não
é de hoje que se debate, no âmbito das contratações governamentais, formas de,
a um só tempo, adquirir produtos com o nível de qualidade desejável, sem, com
isso, desatender os princípios que norteiam o regulamento geral de licitações.
O mais das vezes, os órgãos e entidades da Administração Públicas terminam por
adquirir insumos de qualidade risível levados pela falsa impressão segundo a
qual estariam obrigados a comprar o de custo mais baixo existente no mercado.
Isto
porque, nos termos do art. 15, §7º, I da Lei no. 8.666/1993, é dever do agente
— investido na competência de produzir aqueles documentos técnicos — elaborar a
especificação completa do bem a ser adquirido sem indicação de marca. Somado a isso, tem-se que, para fins de
seleção da proposta mais vantajosa, o critério de julgamento preferencial, é o
de menor preço. Numa visão estreita a
partir de interpretação literal dos dispositivos legais aplicáveis, os órgãos e
entidades acabam diante do mesmo problema, qual seja, a descrição técnica, não
raro, é insuficiente para garantir a qualidade dos produtos a serem adquiridos.
Nada
obstante, comprar coisas ou contratar serviços por meio do tipo de licitação em
que o critério de julgamento seja o de “menor preço”, definitivamente, nunca
foi sinônimo de comprar o “mais baratinho”.
Os
princípios que orientam as licitações públicas, mormente, o da economicidade e
o da indisponibilidade do interesse público, reclamam ações do Gestor Público,
que permitam a seleção da verdadeira
proposta mais vantajosa, que em verdade vem a ser o principal desiderato deste
instituto jurídico. Por proposta verdadeiramente
mais vantajosa, não se entenda incluídas aquelas que atraiam produtos cuja
durabilidade, desempenho e qualidade não reflitam, de fato, vantagem para a
Administração, mas sim aqueles que, ao revés disso, ofereçam uma solução que una,
a melhor vantagem econômica possível à melhor e mais duradoura solução técnica
ao fim a que se destinam.
Não
há óbice que a Administração fixe critérios de aceitabilidade de proposta que
privilegiem os produtos cuja qualidade reflita maior desempenho e durabilidade,
desde que comprovado tecnicamente sua vantagem em relação ao custo-benefício
sobre os demais de custo e qualidade inferiores. E uma das maneiras mais
eficazes para o alcance desse desiderato é, sem sombra de dúvida, a
padronização e a pré-qualificação de marcas.
2 - Base legal para compra com apreço à
qualidade do produto
É
um engano pensar que a Lei 8.666/93 exclui a possibilidade de a Administração
fixar padrões mínimos de desempenho e qualidade e, a partir destes parâmetros,
indicar a marca do produto que pretende adquirir ou, estudar o mercado e formar
previamente um banco de marcas que atendam satisfatoriamente a tais parâmetros.
O que não é permitido é fazê-lo por mero capricho ou desejo pessoal do Gestor. Tal
assertiva se faz em virtude da correta interpretação dos arts. 7º, §5º e 15, I:
Art. 7º, §5º.É vedada a realização de licitação cujo objeto
inclua bens e serviços sem similaridade ou de marcas, características e
especificações exclusivas, salvo nos
casos em que for tecnicamente justificável, ou ainda quando o fornecimento
de tais materiais e serviços for feito sob o regime de administração
contratada, previsto e discriminado no ato convocatório (grifo nosso);
Art. 15 – As compras, sempre que possível, deverão:
I – atender ao princípio da padronização, que imponha compatibilidade de
especificações técnicas e de desempenho, observadas, quando for o caso, as
condições de manutenção, assistência técnica e garantia oferecidas; (grifamos)
Como
se vê do primeiro dispositivo transcrito acima, a indicação de marca específica
não é vedada, mas admitida, muito embora de forma excepcional. Do segundo,
nota-se claramente que a atenção à padronização com base em nível de desempenho
e qualidade vem elevada a caráter principiológico, portanto, tido como regra
geral a ser adotada nas compras governamentais.
Assim,
a vedação à indicação de marca insculpida no pré-citado art. 15, §7º, I deve
ser interpretada de forma harmônica com os demais dispositivos congêneres.
Dessa interpretação resulta que a indicação de marca sempre será possível, ou
melhor, desejável, quando esta for tecnicamente justificável. Será justificável
quando:
a)
for
a única que puder atender ao fim colimado pela aquisição pretendida;[1]
b)
quando,
a partir de comprovação de ordem técnica, a marca indicada for superior às
demais existentes no mercado, representando maior vantagem se considerado o
custo-benefício para a Administração.[2]
Aliás,
essa condição de superior atendimento ao interesse público foi alvo das
diretrizes estabelecidas para o Regime Diferenciado de Contratações-RDC,
instituído por meio da Lei 12.462/2011, a qual, possui dispositivos próprios
para esse fim, senão vejamos:
Art. 4o Nas licitações e contratos de que
trata esta Lei serão observadas as seguintes diretrizes:
I - padronização do objeto da contratação relativamente às
especificações técnicas e de desempenho e, quando for o caso, às condições de
manutenção, assistência técnica e de garantia oferecidas;
III - busca da maior vantagem para a administração pública,
considerando custos e benefícios, diretos e indiretos, de natureza econômica,
social ou ambiental, inclusive os relativos à manutenção, ao desfazimento de
bens e resíduos, ao índice de depreciação econômica e a outros fatores de igual
relevância;
Art. 7o No caso de licitação para
aquisição de bens, a administração pública poderá:
I - indicar marca ou modelo, desde que formalmente
justificado, nas seguintes hipóteses:
a) em decorrência da necessidade de padronização do objeto;
b) quando determinada marca ou modelo comercializado por
mais de um fornecedor for a única capaz de atender às necessidades da entidade
contratante; ou
c) quando a descrição do objeto a ser licitado puder ser
melhor compreendida pela identificação de determinada marca ou modelo aptos a
servir como referência, situação em que será obrigatório o acréscimo da
expressão “ou similar ou de melhor qualidade”;
II - exigir amostra do bem no procedimento de
pré-qualificação, na fase de julgamento das propostas ou de lances, desde que
justificada a necessidade da sua apresentação;
O
Tribunal de Contas da União, atento aos problemas causados por compras
equivocadas, sob o ponto de vista qualitativo, posiciona-se de forma positiva
em relação à indicação de marca como garantia de qualidade, verbis:
“A experiência em licitações públicas tem demonstrado que os
licitantes necessitam, para bem elaborar suas propostas, de especificações
claras e precisas, que definam o padrão de qualidade e o desempenho do produto
a ser adquirido. Se não for assim, corre-se o risco de o licitante ofertar o
que tem de mais barato e não o que pode oferecer de melhor.” (TCU, Licitações e Contratos, Orientações Básicas,
3ª. ed., Brasília, 2006, p. 89)
Descreve uma
série de exemplos em que se compra mal por ser o mais “baratinho”, tais como canetas cuja tinta resseca, vaza ou falha ao ser usada;
copinhos para café de plástico excessivamente finos; cadeiras em que, com pouco
uso, os rodízios emperram e soltam da base, o poliuretano dos braços racha, os
tecidos desbotam, etc. Destaca ainda que “Quem
compra mal, compra mais de uma vez e, pior, com dinheiro público” (Op. Cit.).
Padronização e pré-qualificação de
produtos
A
padronização é procedimento que visa o estabelecimento de um padrão mínimo de
desempenho e qualidade para os produtos que usualmente são adquiridos pela Administração,
assim como à identificação prévia das marcas existentes no mercado que atendam
ao padrão estabelecido. Para Jessé Torres e Marinês Restellato,[3]
“a padronização cabe sempre que houver necessidade e conveniência de se
estabelecerem critérios uniformes para as contratações realizadas pela
Administração.” Acrescentam os referidos autores que a padronização deve ser
orientada por critérios técnicos objetivos, calcados em estudos, laudos ou
pareceres que demonstrem a vantagem econômica e o atendimento às necessidades
da Administração. Além disso, tais laudos ou pareceres técnicos, devem levar em
consideração a relação custo x benefício do produto em comparação com as
alternativas do mercado, a fim de que se chegue a um padrão (nível de
rendimento mínimo ou durabilidade média mínima, por exemplo), que reflita a
melhor atendimento ao interesse público.
A
partir da realização de ensaios e testes de amostras adquiridas no mercado ou
recebidas dos interessados (fabricantes, representantes comerciais), respeitados
os princípios da isonomia, publicidade, ampla defesa e contraditório, a
Administração encontraria o padrão mínimo de desempenho e qualidade aceitável e
passaria a, com base nesse mesmo padrão, pesquisar o mercado de modo a identificar
as marcas que o atendem para fins de balizamento das aquisições futuras. Vamos
a um exemplo prático, porém hipotético.
Um
órgão público, desejando garantir a qualidade mínima aceitável nas compras de
cartuchos de tinta, instaura procedimento de padronização e, após realizar
ensaios técnicos, chega à conclusão de que, dentre os cartuchos compatíveis
disponíveis no mercado, o desempenho mínimo aceitável, considerando a relação
custo-benefício, seria de um mínimo de 3.500 laudas impressas em modo rascunho
como rendimento. A partir desse resultado, a Administração formaria uma relação
daquelas marcas as quais, segundo exame das respectivas amostras, atendem ao
padrão previamente estabelecido. Estaria formado aí, o Banco de Marcas
Pré-qualificados. Ao promover o torneio licitatório, a Administração faria
incluir no Termo de Referência um anexo contendo a relação de marcas
aceitáveis.
Cabe
aqui o cuidado de esclarecer que padronização
não é sinônimo de preferência de marca.
Muito embora o resultado final seja o de apontar as marcas dos produtos que
serão adquiridos no futuro, o resultado desse apontamento deve ser decorrente
da verificação de que as marcas pré-qualificadas representam, de fato, as
opções mais vantajosas tecnicamente para a Administração. Não há espaço para um
juízo de valor pessoal do Gestor motivado por mera preferência pessoal ou capricho
da autoridade competente, conforme já decidiu inúmeras vezes o TCU:
“Faça
constar do respectivo procedimento, na hipótese de optar pela padronização de
produtos, justificativa respaldada em comprovação inequívoca de ordem técnica,
apresentando estudos, laudos, pericias e pareceres que demonstrem as vantagens
econômicas e o interesse da Administração, considerando as condições de
operação, manutenção, assistência técnica e garantias oferecidas. (Acórdão 539/2007 Plenário)”
“Abstenha-se
de indicar preferência por marcas, e na hipótese de se tratar de objeto com características
e especificações exclusivas, a justificativa para a indicação de marca, para
fins de padronização, deverá ser fundamentada em razoes de ordem técnica, as
quais precisam, necessariamente, constar no processo respectivo. (Acórdão 62/2007 Plenário)”
Igualmente
não cabe confundir a padronização com
inexigibilidade de licitação. O fato
de a Administração adotar o princípio da padronização, não lhe dará azo ao
afastamento do dever de licitar. Caso as marcas pré-qualificadas sejam
fornecidas por uma pluralidade de fornecedores, a licitação será obrigatória.
Mais uma vez, quanto a esse aspecto, o TCU tem se mostrado bastante atento:
“Ainda
que fosse admitida a preferência de marca, para fins de padronização, como
permitido pela norma regedora da matéria, art. 15, inciso I, da Lei no 8.666/1993,
afastando, no caso, a contratação de veículos de outra marca, se houver a possibilidade
de os bens serem fornecidos por várias empresas, seria justificada e obrigatória
a licitação. (Decisão 686/1997
Plenário)”
A
pré-qualificação de marcas de produtos não é novidade, apesar de pouco
conhecida. O Tribunal de Contas da União, em Processo datado de 1995 já
considerou válida essa hipótese ao apreciar a aquisição de portas de segurança
pelo Banco do Brasil[4]
Em
2008 a ANVISA publicou excelente estudo[5]
desenvolvido por um Grupo de Trabalho designado pela Portaria ANVISA n.
314/2008, por meio do qual analisa a experiência de cinco hospitais de
referência[6]
em que se promoveu a pré-qualificação de produtos da área da saúde,
explicitando e fixando aspectos estruturais e de fluxos de processo de trabalho
para a realização de testes legais, técnicos e funcionais, visando incentivar a
implantação do regime de pré-qualificação de produtos médicos nas demais
unidades de saúde pública.
Cumpre
destacar que a padronização é sempre desejável, pois, tende a equalizar melhor
os custos da Administração no que se refere à durabilidade do material
adquirido, bem como manutenções e revisões técnicas. Em homenagem aos
princípios da eficiência e da razoabilidade, a adoção do princípio da
padronização será um dever, sempre que se demonstrar como melhor solução gerencial.
É a lição do saudoso mestre, Gasparini[7],
verbis:
“O dispositivo, embora não pareça, torna obrigatória a
padronização de bens utilizáveis no serviço; impõe que toda a compra seja
avaliada sob esse princípio, com o intuito de evitar aquisições de bens
diferentes nos seus elementos componentes, na qualidade, na produtividade, e na
durabilidade, com implicações diretas no estoque, na manutenção, na assistência
técnica, nos custos, no controle e na atividade administrativa... Cabe-lhe,
destarte, sempre que possível, adotar o estander, o modelo, dentre os vários
bens similares encontráveis no mercado, ou criar o seu próprio padrão,
inconfundível com qualquer outro existente no comercio. Na primeira hipótese, a
escolha recairá, conforme a natureza do bem, sobre uma marca (bens imóveis), uma raça (animais), um tipo (alimento), por
exemplo; na segunda, criará o próprio bem e este será o padrão.”
A
aplicação do princípio da padronização, tanto para aquisição de novos produtos,
como na continuidade de produtos já adquiridos, pode resultar em três
resultados práticos, a saber:
a)
padronização
relativa;
b)
padronização
absoluta; e,
c)
padronização
reversa.
A
padronização relativa ocorrerá quando a unidade técnica responsável pelos
ensaios e testes identificar no mercado várias marcas que preenchem, o padrão a
ser adotado. Daí resultará, ao final de todo o procedimento, um banco de marcas
pré-qualificadas. Já a padronização absoluta ocorrerá quando, do exame das
variáveis de mercado decidir por uma solução específica, ou seja, não haverá um
“banco”, um conjunto de marcas, mas sim, a indicação de uma única marca ou
solução especifica. Isso somente ocorrerá nos casos em que a unidade técnica
identificar que tal solução (ou marca) é, indiscutivelmente muito superior às
alternativas existentes. Finalmente, casos haverá (com menor frequência, é
verdade) em que a maioria das soluções ou marcas existentes no mercado atende
ao padrão mínimo de desempenho e qualidade, sendo que apenas poucas são aquelas
que fogem a tal modelagem. Nesses casos, seria mais pragmático, elaborar uma
pequena listagem com as marcas inapropriadas, ao invés de uma listagem enorme
com aquelas que atendem ao padrão estabelecido. Para fins de julgamento das
propostas, isso facilitaria sobremaneira o trabalho do Pregoeiro/CPL na análise
de aceitabilidade das propostas, pois teria uma lista pequena para conferir se
a marca do produto cotado está de acordo com o processo de padronização.
A
partir do resultado obtido, os editais de licitação para aquisição dos produtos
objeto da padronização passariam a indicar a(s) marca(s) pré-qualificada(s), as
quais se tornaram critério de aceitabilidade de propostas. Quer dizer que o
licitante que cotar marca diversa daquelas pré-qualificadas, terá sua proposta
desclassificada. Com isso, praticamente se elimina o risco da aquisição de
produtos cuja qualidade seja deficiente, pois já se sabe de antemão que as
marcas que vierem a ser cotadas já foram submetidas a testes e ensaios e
atendem ao desempenho e qualidade mínimo aceitáveis.
Necessidade de regulamentação
Ao
se pensar na implantação do sistema de pré-qualificação é necessário, antes,
regulamentar o procedimento por via de norma interna. É que o art. 15, da Lei
no. 8.666/93, além de não dispor detalhadamente sobre como se daria o
procedimento, estabelecendo apenas a padronização como elemento
principiológico, é de natureza específica. Na lição de Jessé Torres[8],
a norma “não apresenta caráter geral. A uma, porque prescindível para o
cumprimento do princípio. A duas, porque a aplicação dos incisos dependerá de
contingências locais, variáveis ao infinito.”
Assim,
a primeira providência a ser tomada será a de elaborar o regulamento que irá
balizar todo o procedimento de padronização. Tal norma, que pode ser de alcance
geral (uma lei estadual ou municipal) ou de cunho interna corporis (norma interna do órgão ou entidade), deverá
dispor sobre que bens ou segmento serão submetidos à padronização, as
principais definições legais de termos que serão empregados nos editais e
laudos técnicos, competências dos diversos setores envolvidos, procedimentos de
recebimento de amostras, e a quem competirá sua respectiva análise, prazos para
impugnação dos editais de chamamento público e da decisão sobre a aprovação ou
não do produto, prazo de validade da pré-qualificação, condições de reexame e
outras condições gerais.
Hodiernamente
a legislação infraconstitucional já conta com alguns ótimos exemplos a serem
seguidos, tais como: Paraná – Lei Estadual
nº15.340 de 22/12/2006; Espírito Santo – Decreto nº 44.786 de 28/04/2008; Sergipe
– Instrução Normativa/SEAD nº 001 de 01/07/2009; Minas Gerais – Resolução SES
nº 870 de 28/03/2006; e, Hemominas – Portaria PRE nº 006/2006. Note-se que, dos
exemplos citados, cada um se refere a uma espécie de texto normativo, o que
indica que a forma de regulamentar a matéria é livre. Outro interessante
exemplo se vê no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que já conta
com um sistema de pré-qualificação de marcas para determinado segmento, cujo
programa recebeu o nome de CIQ — Cadastro de Insumos de Qualidade[9].
Requisitos para a instrução do processo
de padronização
A
padronização deve ser instrumentalizada em processo próprio, devidamente
autorizado pela autoridade superior do órgão ou entidade. Tal processo será
precedente ao da licitação. Isto porque, a pré-qualificação, uma vez aprovada,
passará a balizar todas as contratações futuras daquele objeto. O processo
deverá respeitar, em especial, os princípios da publicidade, isonomia, ampla
defesa e contraditório e julgamento objetivo.
Considerando
já haver regulamentação que permita a deflagração do processo de padronização,
a primeira medida, a cargo do setor interessado na pré-qualificação, será a
elaboração de uma exposição de motivos,
documento dirigido à autoridade competente, no qual aponte os bens ou segmento que
será alvo do processo, relatando os motivos pelos quais entende pertinente
submetê-los à padronização. Esse relato deverá apontar as dificuldades até
então experimentadas no processo tradicional de compra e os benefícios que se
pretende alcançar após a implantação do sistema. Não vejo como necessário,
nessa fase preliminar, que tal expediente seja submetido ao crivo da Assessoria
Jurídica, posto que o enquadramento legal e a análise de juridicidade da
padronização já teriam sido feitos ao tempo da aprovação do regulamento. Ademais
disso, a decisão da Autoridade Competente será consubstanciada em juízo próprio
de conveniência e oportunidade, ou seja, de caráter indiscutivelmente
discricionário, e, portanto, fora do espaço opinativo do órgão consultivo.
Uma
vez aprovada a medida, o passo seguinte será o da indicação da Comissão ou
setor que será responsável pela análise dos matérias e amostras e julgamento
dos pedidos de ingresso na pré-qualificação. Em seguida, a Comissão ou Setor
responsável passará à elaboração do edital de chamamento público. Sim. Será
necessário que o órgão torne público que irá proceder à pré-qualificação de
marcas para as compras futuras daquele objeto (ou segmento). Esse edital deverá
dispor, minimamente, sobre as características técnicas do objeto a que se
refere, dos procedimentos para apresentação das amostras, qual a metodologia
que será empregada para os testes e ensaios, que resultados as amostras devem
apresentar para o fim de serem consideradas pré-qualificadas, quais os
procedimentos para os interessados acompanharem a entrega e os exame das
amostras, caso queiram, prazos para recursos sobre as decisões, procedimentos
de reexame de marcas reprovadas. Agora, sim, o processo deve seguir à
Assessoria Jurídica para análise de juridicidade do edital, a teor do disposto
no art. 38, par. único, da Lei no. 8.666/93, que entendo aplicável à matéria.
A
Assessoria Jurídica deverá dedicar especial atenção aos requisitos suso citados,
ou seja, se o edital privilegia a isonomia, com regras de pedido de ingresso,
de entrega e exame de amostras, de vistas dos autos que não causem maior
dificuldade a quem quer que seja. Por exemplo, seria defeituoso o edital que,
para padronização de insumos, somente aceitasse amostras recebidas diretamente
na repartição, impossibilitando encaminhamento por correio ou transportadora.
Com isso, os interessados localizados em outra cidade ou Estado, arcariam com
um custo elevado de participação no processo, apenas para entregar as amostras.
Também deverá observar se os critérios de aferição das amostras foram
construídos com elementos objetivos. Os testes se basearão em questões de ordem
legal, técnica e funcional. O edital deve prever condições que possibilitem aos
interessados acesso aos autos do processo, bem como impugnar os termos do
edital e recorrer das decisões da Comissão que irá presidir toda a instrução,
em homenagem ao contraditório e ampla defesa.
Para
fins de atendimento ao princípio da publicidade, a divulgação deverá ser a mais
ampla possível. Será insuficiente a simples publicação do aviso na imprensa
oficial. O órgão deverá encaminhar comunicação aos interessados do ramo
pertinente que compõe o Cadastro de Fornecedores, bem como os fabricantes dos
produtos, tudo, de modo a que se garanta a maior abrangência possível. Seria de
excelente alvitre que também viesse a comunicar as Federações e Confederações
de empresas do ramo a que pertence o negócio.
Realizados
os ensaios e testes, e alcançada a lista de marcas aceitáveis, de acordo com os
padrões técnicos fixados, o processo seguirá para a Autoridade Competente para
homologar o resultado e publicar a Portaria de Padronização, documento que
tornará públicas as marcas que foram aprovadas durante os testes.
Gerenciamento do Sistema de Padronização
Agora
que foi publicada a Portaria de Padronização, os Termos de Referência relativos
aos produtos padronizados passarão a ser elaborados de acordo com o resultado
do processo, não só descrevendo tecnicamente os materiais, como também
indicando as marcas pré-qualificadas que serão consideradas aceitáveis no dia
da licitação. Assim, fazendo referência ao número do processo de padronização, os
editais deverão conter cláusula de critério de aceitabilidade de propostas no
sentido de o licitante ser obrigado a cotar uma das marcas indicadas. Caso a
lista seja grande, recomenda-se a criação de um anexo para facilitar a leitura
e identificação das referidas marcas.
Engana-se
quem pensa que o processo de padronização termina com a publicação da
respectiva Portaria. Aon contrário, permanecerá ativo enquanto a padronização
for pertinente e útil para a Administração. Durante seu ciclo de vida, poderá
receber amostras de produtos que até aquele momento ainda não havia sido
testado. Também poderão ser reexaminadas marcas já examinadas a pedido do
interessado, desde que demonstrado que há razões para acreditar que o produto,
antes recusado, agora atende aos padrões fixados. A pré-qualificação de marcas
que foram aprovadas poderão ser canceladas caso haja algum motivo que dê
suporte a essa decisão, tais como comprovação de fraude do produto ou das
informações ou avaliações negativas dos usuários dos produtos colocados em
utilização após a compra.
Em
princípio, a pré-qualificação não possui prazo de validade. Muitos perguntam de
quanto em quanto tempo o produto precisa ser novamente submetido a teste.
Apesar de a maioria das normas em vigor que tratam desse assunto prever prazo
de validade de um ano, entendo que, uma vez aprovada o produto, torna-se
desnecessário submetê-lo a novos testes. Ora, se o produto testado e aprovado
anotar, com o passar do tempo, perda da qualidade, essa circunstância será
sentida pelos usuários. Claro que para esse fim, considera-se medida de boa gestão
que os setores de almoxarifado criem interfaces com os usuários e realizem
constante avaliação de desempenho dos materiais a eles distribuídos, sem o qual
será praticamente impossível medir a manutenção do nível de qualidade dos
produtos. Uma vez que as avaliações comecem a indicar perda de qualidade, a
Administração submeteria tal produto novamente aos testes e, se o resultado for
negativo, proceder ao cancelamento da pré-qualificação. Por óbvio, que esse
procedimento também será pautado pelos princípios do contraditório e ampla
defesa.
A utilização do princípio da
padronização nas obras públicas
No
caso das obras e reformas, é sabido que, dentre vários fatores, a qualidade
final do objeto está diretamente associada ao nível de qualidade dos insumos e
materiais de acabamento utilizados. Mesmo o leigo na ciência da engenharia e
arquitetura sabe bem que o mercado é assoberbado de variações de marcas e
padrões diferentes para um mesmo tipo de produto. Há maçanetas de maior ou
menor resistência e durabilidade; espelhos de tomadas, louças sanitárias, pisos
e revestimentos etc., cuja qualidade e durabilidade são bastante díspares
considerando as várias marcas disponíveis.
Engenheiros
e arquitetos são diuturnamente desafiados a elaborar seus projetos básicos e
executivos para licitações de obras e reformas para os órgãos e entidades do
Poder Público, com descrição técnica desses itens de modo que, a um só tempo,
vinculem o maior grau de competitividade entre os possíveis interessados, sem
prejuízo da observância da economicidade e atendimento ao superior interesse
público.
A
partir do que se discutiu acima, resta agora estabelecer os pontos de
convergência entre a possibilidade de a Administração Pública comprar coisas
(equipamentos, mobiliário, consumíveis de informática, artigos
médico-hospitalares etc) com base em indicação de marca específica ou banco de
marcas pré-qualificadas e realizar os mesmos procedimentos para informar a
elaboração do Projeto Básico de uma obra de edificação.
É
cediço que do Projeto Básico, elaborado com as indicações mínimas constantes do
art. 6º, IX, da L. 8.666/93, constarão descritos tecnicamente os insumos que
deverão ser empregados na obra. Tal descrição, a exemplo do que seria feito
caso adquiridos diretamente (ao invés de embutidos na obra) deve estabelecer os
critérios mínimos que garantam qualidade, durabilidade e desempenho. Tal
cuidado fatalmente irá se refletir no conjunto da obra. Uma edificação
levantada com materiais de segunda linha é um risco à sua própria existência.
Também
é igualmente cediço que na ausência de um maior apuro na descrição técnica dos
materiais empregados, o contratado, com o fito de reduzir custos e aumentar sua
margem de lucro, buscará empregar materiais de baixo custo e, conseqüentemente,
de baixa qualidade.
Por
tais motivos, não só é possível empregar os conceitos de padronização para fins
de indicação de marca específica e/ou pré-qualificação de marcas para os
produtos empregados nas obras públicas, como, a nosso aviso, parece ser mais do
que recomendável, pois o eventual prejuízo decorrente do emprego de materiais
de qualidade risível poderá causar prejuízos irreparáveis.
Padronização no Regulamento do Sistema
“S”
As
entidades do chamado Sistema “S” que compõe o Serviço Social Autônomo, são
entidades paraestatais, de personalidade de Direito Privado, de finalidade não
lucrativa, “criados por lei com o objetivo de prestar assistência ou ensino a
certas categorias sociais ou grupos profissionais[10].
Atuam em cooperação ao Estado, não integrando este, executando atividades de
relevante interesse público, recebendo e gerindo recursos oriundos de
contribuições parafiscais.
Justamente
em razão desse perfil, é que tais entidades (SESC, SEBRAE, SENAR, SENAC, SESAT
etc) encontram-se submetidas ao princípio do Dever Geral de Licitar, insculpido no art. 37, XXI da Carta Magna
de 1998. Todavia, não se submetem aos ditames da Lei no. 8.666/93, estando
obrigadas, apenas, à fiel observância dos princípios constitucionais e legais
que informam a despesa pública, como já pacificou o Tribunal de Contas da União[11]:
“...registro que o TCU tem o entendimento pacificado de que
as entidades do Sistema ‘S’, entre elas o Serviço Social do Comércio (SESC),
não estão obrigadas a seguir rigorosamente os termos da Lei no. 8.666/93 e não
são alcançadas pelo comando contido no art. 4º do Decreto no. 5.450/2005, que
impõe a utilização da modalidade pregão para aquisição de bens e serviços
comuns, no âmbito da União. Tais entidades, que não integram a Administração
direta e nem a indireta, estão obrigadas ao cumprimento de seus Regulamentos
próprios, os quais devem estar pautados nos princípios gerais do processo
licitatório e consentâneo ao contido no art. 37, caput, da Constituição Federal.”
Escapa,
pois, a qualquer controvérsia, que as entidades do Serviço Social Autônomo
prestam obediência aos princípios que regem a despesa pública, notadamente, ao
do Dever Geral de Licitar, por meio
de seus Regulamentos. Nada obstante, tais normativos próprios constituem peças
bastante simples, se comparados ao arcabouço das normas legais a que se
submetem a Administração Pública. E, claro, haverá casuísmos tendentes ao
infinito para os quais o Regulamento não disporá de norma balizadora. Afinal,
“não podem os repositórios de normas dilatar-se até a exagerada minúcia, prever
todos os casos possíveis no presente e no futuro. Sempre haverá lacunas no
texto, embora o espírito do mesmo abranja órbita mais vasta.”[12]
Para
as situações concretas que não são tratadas, amparadas nos respectivos
Regulamentos, a solução será encontrar na Lei no. 8.666/93, por analogia, que é técnica de
“interpretação extensiva ou indutiva pela semelhança com outra lei ou outro
texto...promovida em face de outros dispositivos que regulam casos idênticos ao
da controvérsia,[13]” dispositivos
que possam regular o caso concreto, afim de que, as entidades do Sistema ‘S’
cumpram o dever de observância dos princípios gerais da Administração Pública.
No
campo prático, as entidades integrantes do Sistema ‘S’ saboreiam amargamente os
mesmos problemas e dificuldades encontradas pelos demais órgãos e entidades da
Administração Pública direta e indireta, e que já foram relatadas acima, no que
tange à qualidade, desempenho e durabilidade dos produtos e insumos que
adquirem por via da licitação pública. É igualmente cediço que, por serem guardiões
dos princípios que balizam a despesa pública, tais entidades devem fiel
observância, dentre outros, aos princípios da eficiência, indisponibilidade
do interesse público e da seleção da
proposta mais vantajosa. Assim, devem propor meios que lhes permitam
agregar ao dever de licitar, com respeito à isonomia entre os possíveis
interessados e à seleção da proposta mais vantajosa, adquirir produtos com
nível desejável de qualidade e desempenho.
Por
isso, com fundamento no que foi dito acima, não tenho dúvidas em afirmar que as
entidades do Sistema ‘S’ também podem balizar suas compras no princípio da
padronização, a despeito da ausência de normativo próprio, mas com aplicação,
por analogia, do disposto no art. 15, inc. I, da Lei no. 8.666/93,
e, nesse contexto, implantar sistema de pré-qualificação de marcas, na forma
como acima foi tratado.
Conclusão
Diante
do que foi aqui exposto, conclui-se que os órgãos e entidades do Poder Público
e as entidades integrantes do chamado Sistema ‘S’, desde que observados os
princípios da isonomia, publicidade, julgamento objetivo, ampla defesa e
contraditório, estão autorizados a:
a)
indicar
e/ou pré-qualificar marcas de produtos para fins de aquisição futura;
b)
realizar
o mesmo procedimento acima, quando da elaboração de Projetos Básicos de obras e
serviços de engenharia;
*Bacharel em
Administração e Direito. Especialista em Direito Administrativo. Professor
Convidado da Fundação Getúlio Vargas e da PUC-Rio. Professor da Escola Nacional
de Serviços Urbanos-ENSUR. Autor das obras Curso
Prático de Licitações-Os Segredos da Lei nº 8.666/93, IBAM/Lumen Juris,
2011 e Licitações Para Leigos, Alta
Books, 2015.
[1]
Para ampliação de sistema de comunicação por rádio, os novos rádios
transceptores a serem adquiridos devem ser da mesma marca dos já em operação,
posto que, em virtude de protocolos específicos de comunicação, os de marca
diversa com eles não se comunicam. Não se deve confundir, entretanto, com a
hipótese prevista no art. 25, I, (inexigibilidade de licitação por
exclusividade de fornecimento), pois mesmo havendo apenas uma marca aceitável,
será possível haver vários fornecedores que a comercializam, o que afastaria o
conceito de inviabilidade de competição.
[2] Se um
produto custa, no mercado, R$ 100,00 por m2 e dura, após sua
instalação, um ano e outro R$ 115,00 por m2, porém dura 5 anos
instalados, é nítido que o segundo, embora mais caro, traz muito maior vantagem
para a Administração.
[3]
PEREIRA JÚNIOR, Jessé Torres e DOTTI, Marinês Restelatto. Políticas Públicas nas Licitações e Contratações Administrativas, Fórum,
2ª ed. Belo Horizonte, 2012.
[4]
Processo TC-003.289/95-8, Decisão nº 491/95
- Plenário, Rel. Min. Iram Saraiva.
[5]
GT Materiais/ UTVIG/
NUVIG/ ANVISA. Pré-qualificação de artigos médico-hospitalares: Estratégia de
vigilância sanitária de prevenção/
ANVISA/MS – Brasília, 2008.
[6]
Instituto Nacional de Câncer - INCA-MS/RJ,
Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo - Incor-HC/FMUSP, Hospital de Clínicas de Porto
Alegre - HCPA, Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais –
HC/UFMG,
[7] GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo,17ªed., Saraiva. Rio de Janeiro, 2001, p.
537.
[8]
PEREIRA JÚNIOR, Jessé Torres.
[9]
Disponível em: http//www.tjrj.jus.br/web/guest/licitacoes. A despeito disso,
muito embora a iniciativa do TJRJ seja louvável, os procedimentos de análise
ainda merecem muitos reparos, pois baseados, muitos, em critérios de ordem
subjetiva.
[10] MEIRELES, Hely
Lopes. Direito Administrativo Brasileiro.
25ª. Ed., Malheiros. São Paulo, 2000. p 346.
[11] TCU, Ac.
1.392/2013-Pl.
[12]
MAXIMILIANO, Carlos, Hermenêutica e
Aplicação do Direito. 13ª. Ed., Forense: 1993, p. 208.
[13] SILVA, De
Plácido e. Vocabulário Jurídico. 25ª.
ED., Forense: 2004.
Justo o que eu procurava sobre Programa de Garantia de Qualidade Radiologia. Obrigado!
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